Daniela Prandi/Do Bikemagazine

Otávio Rocha na redação do Bikemagazine
Uma aventura de bike do guitarrista da banda Blues Etílicos, Otávio Rocha, serve de inspiração para a música Izirráider de Bicicleta (leia a letra abaixo), que dá título ao primeiro CD da banda Macabu, criada pelo músico há menos de um ano. Paralelo ao blues, Otávio Rocha, que já foi maratonista, revela sua paixão pelas bicicletas ao contar a viagem que fez, com os amigos Ricardo Fasarello e o português Fernando Sezedelo em 1986.
O guitarrista, em visita à Bikemagazine, revirou o baú de recordações. Na época, ele havia acabado de entrar para a banda Blues Etílicos e tinha uma loja de discos usados no Rio de Janeiro. Com os amigos, resolveu largar tudo e ir para os Estados Unidos de bicicleta.

Logo na saída, atropelamento na Barra da Tijuca
“Nossa viagem foi planejada às pressas, tudo bagunçado. Já começou engraçada. Era época de recadastramento eleitoral e eu compareci para me recadastrar todo pronto para a viagem, com roupa de ciclista, comédia total”, relata.
“Dali, saímos para a viagem e, logo na Barra , um carro atropelou o Fernando”, conta. “Naquela época não havia, no Brasil, as bikes de hoje. Fomos de Caloi 10. Vimos, em uma revista americana, um tipo de bolsa lateral para colocar na bike e mandamos fazer igual em um camarada amigo nosso. É claro que não ficou legal, a bolsa pegava na roda traseira e o bagageiro quebrou pra caramba”. Para garantir que a bolsa ficasse longe da roda traseira, o pai de Otávio resolveu improvisar: “amarramos com barbante”. Durou até o México!

A Caloi 10 aguentou bem a aventura
O projeto da viagem era sair do Brasil pelo Pantanal, cruzar Bolívia, atravessar o Peru e subir o Equador e, de lá, pegar um barco em direção à Baja California, no México e, depois, a Costa Oeste dos Estados Unidos. “A gente ia se virar pra atravessar de barco, tínhamos um contato, nem sabíamos direito como ia ser”, diz. O plano era pedalar 50 km por dia. Mas o trajeto teve de ser mudado conforme a aventura começou.
Ainda no Brasil, os três amigos passaram por Ubatuba, Taubaté, interior de São Paulo, e depois Campo Grande … “Fomos para o Pantanal de bicicleta, foi a maior doideira. Na época não estava asfaltado, cruzava cobra no caminho, a gente tinha de esperar jiboia atravessar pra continuar pedalando”, diverte-se.

Momento de descanso merecido
“Cruzamos a fronteira boliviana e, como não tinha ninguém, fomos pedalando. Depois, uns soldados do exército nos encontraram e deu o maior rolo porque a gente não tinha carimbo de entrada.”
“Conclusão: tivemos de voltar para a fronteira: era época de Copa do Mundo e o pessoal de fronteira, aqueles tipos gordos, suarentos, com aquela cara, porque tiveram de parar de ver o jogo…” Os amigos seguiram caminho e logo encontraram um garoto. “A primeira coisa que ele disse é se queríamos trocar nossas bicicletas por cocaína, olha só”.
“Assim que chegamos na primeira cidade boliviana, descobrimos que não tinha estrada! Acabamos pegando o trem para Santa Cruz de La Sierra. Foi uma doideira. O trem descarrilou no meio da noite na selva. Foi aquela barulheira, gritaria, gente pulando do trem, veio até o exército para recolocar o trem nos trilhos…”, continua Otávio.
“Quando chegamos a Cochabamba, vimos que não íamos conseguir subir para La Paz, por causa da altitude”, conta. O trio, então, comprou passagens para La Paz, de ônibus. Mas um dos amigos teve um surto de pavor e se recusou a embarcar. “A gente lá na Rodoviária com os tickets na mão mas , como o nosso lema era não vamos nos separar nunca, resolvemos ir de avião”, lembra.
Em La Paz, o trio encontrou mais um problema. “Tinha rolado um atentado terrorista no lado peruano, morreu turista e tudo, foi ataque do Sendero. Ficamos com medo, fomos na embaixada brasileira e eles falaram pra gente não continuar. Ficamos chateados porque cortou a nossa e resolvemos ir para o México e compensar o tanto que deixamos de pedalar no Peru e Equador”.

Um típico casebre no interior do México
O trio chegou na Cidade do México e resolveu atravessar o país. “Vimos lugares lindos, como Puerto Escondido, superbonito. Na Baja California, de bicicleta, com aquele visual lindo, desertão mesmo, e o som de um gravador a pilhas tocando J.J.Cale, demais”. Os amigos começaram a pedalar durante o dia e quase morreram com o calor. “Vimos que o jeito era pedalar de noite. A gente comprou um farolzinho e o primeiro ia na frente, guiando.”
“No México, o pessoal não respeita bicicleta, os motoristas de ônibus são malucos. Na Cidade do México ficamos no YMCA e perdemos mais alguns dias. É que a comida mexicana fez a fama, passei mal, tive febre. Quando você pedala, fica com uma fome animal. A comida lá é pouca, muito apimentada, não é essa versão americanizada que a gente conhece”, continua.

Da esq. para dir. Otávio, Fernando e Ricardo no México
Os amigos continuaram a aventura, dormiram em posto de gasolina, no meio do mato, o que precisasse. “A gente via que tinha uma cidadezinha no mapa, mas quando você chegava, eram três casebres”. Em uma dessas situações, os bikers tiveram de pegar carona, depois de rodar 150 km, e não encontrarem nada de nada. “Fomos de caminhão até encontrar um lugar pra poder comer e dormir. Foi um passeio aventureiro, hoje deve ter mais estrutura pedalar pelo México. O ideal é fazer a viagem no inverno ou pedalar de noite”, recomenda.
Por conta de um amigo de seu pai, Otávio Rocha levava uma carta que garantiu certos favores. “Era uma carta de um ministério qualquer que eu não me lembro, meu pai era amigo de alguém, essas coisas… A carta pedia apoio pra gente, falava que nossa viagem era para a integração entre os povos. Graças a essa carta chegamos a ficar, uma vez, em um hotel 5 estrelas.. Nossa aventura teve altos e baixos, num dia dormíamos no chão e no outro…”
A tal carta, inclusive, livrou o trio da cadeia! “No México, uma vez, prenderam a gente, nos levaram pra delegacia, lá era só marginal da pesada. Prenderam a gente do nada, ficamos com medo, não sei se eles acharam que a gente era americano, eu sou lourinho, o outro tinha olhos azuis… Mostrei a carta e tudo mudou, da água para o vinho. O delegado acabou mostrando a coleção de armas dele, tratou a gente superbem!”.

Trecho do deserto da Baja Califórnia
Já nos Estados Unidos – cujo visto só foi conseguido após um jornal carioca noticiar a viagem do trio – o choque foi, “ao contrário”. “Conhecemos um americano que nos levou para uma livraria, lá, vimos muitos livros de viagens de bike, compramos um, o “Biking in the Pacific Highway. A famosa HW1 é uma estrada costeira linda, de visual absurdo”.
Quando os amigos chegaram a San Diego, nem tinham ideia de onde ficariam. “Foi aí que vimos, em uma revista de ciclismo, o telefone de um dos editores, fulano de tal. Ligamos para o jornalista e ele nos recebeu legal, ofereceu a varanda da casa pra gente dormir. Nos salvou em nossa primeira noite nos Estados Unidos”.
A aventura terminou em São Francisco, dias depois. “Eu me arrependo de não ter continuado a pedalar”, lamenta Otávio. “Chegamos e foi doido, uma sensação de acabou tudo… Foi doido porque, mesmo na maior desorganização, deu tudo muito certo. Ninguém saiu machucado, não fomos roubados, éramos sempre bem recebidos, acho que por causa das bicicletas”.

Otavio Rocha em ação com o Blues Etílicos
Ao final, três meses e seis mil quilômetros de pedaladas depois, eles acabaram doando as bikes para uma instituição de caridade. “Nossas bicicletas eram relíquias'”. Sem as bikes, eles resolveram conhecer mais os Estados Unidos.
Foram até uma locadora de carros e pegaram um carro no sistema drive away para devolver, e blueseiro que é, Otávio Rocha só teve uma direção: New Orleans.
O guitarrista, sempre que pode, relembra sua aventura com os amigos de viagem, com os quais continua mantendo contato. “Sair em uma viagem dessas é um teste para sua sorte. Você se coloca à disposição da tua sorte, de teu destino, quem serão as pessoas que você vai encontrar, como vai lidar com as situações. E, o mais legal, que é saber que, de bike, e com coragem, dá para realizar uma grande aventura. Qualquer um pode. Você pode”.

IZIRRÁIDER DE BICICLETA
Música: Cláudio Bedran / Otávio Rocha
Letra: Cláudio Bedran
Vou te dizer, Vou te contar,
Cinco mil léguas, Pra pedalar
Olho vermelho, Farol na cara,
Olho vermelho, Preso na estrada
Animais mortos, Atropelados,
Daqui pra lá, Daqui pra lá
(Refrão)
Izirráider de bicicleta (3x)
Vou te dizer, Vou te contar, Cinco mil léguas, Pra pedalar
O chão rachado, Corpo cansado, Suor na cara, Chuva na estrada
Tacos baratos, Pão requentado, Daqui pra lá, Daqui pra lá
(Refrão)
Izirráider de bicicleta (3x)



