Gabriel Vargas/Especial para o Bikemagazine
Fotos de divulgação
Em 1988, Ayrton Senna guiou com perfeição na classificação do GP de Mônaco, chegando aos limites do carro, da pista e do piloto. Em seguida, relatou suas sensações: “Foi naquele dia em que percebi que já não estava mais dirigindo conscientemente. Para mim, era como se fosse uma outra dimensão. O circuito era um túnel para mim e eu só ia, ia e ia em frente”.
Um piloto extremamente habilidoso desempenhando em um nível extremamente alto. Senna não sabia, mas sua frase viria a ser um dos melhores exemplos para a sensação do estado de fluxo, um estado de consciência relacionado com o envolvimento pleno, profundo e imediato na atividade desempenhada.
Você já vivenciou uma situação de extrema concentração ao realizar alguma tarefa tão exigente que chegou a perder a noção do tempo e do ambiente ao redor? Se sim, você provavelmente chegou próximo ao fluxo. Como professor e treinador, uma das minhas maiores preocupações é que meus alunos tenham as melhores experiências possíveis sobre a bike. O desenvolvimento das habilidades e capacidades propicia o empenho em desafios cada vez maiores, seja em trilhas mais técnicas, competições mais duras ou treinos em ritmos mais árduos. Mas qual a explicação por trás disso?
O fluxo
Segundo o psicólogo ítalo-húngaro Mihaly Csikszentmihalyi, o uso do termo fluxo (flow) corresponde a uma metáfora utilizada por muitos dos entrevistados de suas pesquisas desde a década de 1960 para descrever a “sensação de ação sem esforço experimentada em momentos que se destacam como os melhores de suas vidas” (1999, p. 36). Outros termos também utilizados foram, por exemplo: “em êxtase”, “em completa satisfação”, “focado”, “em envolvimento total”, “completamente conectado”, “ligado”, “concentrado”, “no trilho” “em sintonia”, “no controle”, “flutuando” dentre tantos outros. Embora as atividades que promoveram as sensações de fluxo descritas pelos entrevistados de Csikszentmihalyi fossem variadas, as descrições da experiência são similares e consistentes.
A mente pode lidar com apenas uma quantidade limitada de informação a cada momento, que é aproximadamente 126 bits de informação por segundo (MILLER apud CSIKSZENTMIHALYI, 1988). Uma conversa consome cerca de 40 bits desta capacidade. Esta é a razão, segundo Csikszentmihalyi, para a dificuldade em realizar tarefas simultâneas como, por exemplo, escrever uma carta ou jogar xadrez enquanto conversamos. Embora normalmente seja possível deslocar a atenção para aquilo que é desejado, o estado de fluxo provoca tamanha imersão, ao ocupar uma grande parte da capacidade de informação, que perde-se a noção de todas as outras coisas, como o tempo, pessoas ao redor e necessidades fisiológicas como fome, cansaço, dor etc.
Isso acontece pois não resta capacidade de processar informação. Ou seja, não resta atenção para ser alocada a estes outros elementos. Csikszentmihalyi (1999) deixa claro que, devido a esta quase total exigência de energia mental, uma pessoa no fluxo encontra-se completamente concentrada. Como já foi dito, não há espaço na consciência para pensamentos incoerentes ou que distraiam – “a autoconsciência desaparece, no entanto a pessoa se sente mais forte do que de costume. O senso de tempo é distorcido” (CSIKSZENTMIHALYI, 1999, p. 38).
Uma das características do fluxo é a sensação modificada do modo com que o tempo passa. Horas podem parecer como minutos e minutos como segundos, mas o contrário também pode ocorrer, com a sensação de que o tempo estirou-se. Para Jackson e Csikszentmihalyi (1999), aparentemente a transformação do tempo é resultado da concentração total, de maneira que é possível perceber a atividade com mais clareza, de uma maneira diferente de como seria fora do fluxo.
Condições para o Fluxo
A condição primordial para que o fluxo ocorra é, de fato, um equilíbrio entre o desafio da tarefa e a habilidade do participante. Conforme Csikszentmihalyi (1999),
O fluxo tende a ocorrer quando as habilidades de uma pessoa estão totalmente envolvidas em superar um desafio que está no limiar de sua capacidade de controle. […] Se os desafios são altos demais, a pessoa fica frustrada, em seguida preocupada e mais tarde ansiosa. Se os desafios são baixos em relação às habilidades do indivíduo, ele fica relaxado, em seguida entediado. Se tanto os desafios quanto as habilidades são percebidos como baixos, a pessoa se sente apática.
Mas quando altos desafios são correspondidos por altas habilidades, então é mais provável que o profundo envolvimento que estabelece o fluxo à parte da vida comum ocorra. O alpinista o sentirá quando a montanha exigir toda a sua força, a cantora quando a canção exigir toda a extensão de sua capacidade vocal, o tecelão quando o desenho da tapeçaria é mais complexo do que qualquer coisa já tentada antes, e o cirurgião quando a operação envolve novos procedimentos ou exige uma variação inesperada. Um dia típico está cheio de ansiedade e tédio. As experiências de fluxo oferecem os lampejos de vida intensa contra esse fundo medíocre (p. 37).
A relação entre habilidades e desafios e o resultado de suas combinações pode ser ilustrada no gráfico a seguir:

O estado de fluxo pode ser alcançado quando há um equilíbrio ideal entre altas habilidades e grandes desafios
Em Fluxo sobre a bike
Observe que os desafios e as habilidades devem ser algo acima do comum para que o fluxo ocorra. Um mountain biker experiente poderá entrar em fluxo durante um single track bastante técnico, mas um novato dificilmente experimentará a mesma sensação ao andar em um local menos exigente. Da mesma forma, um ciclista de estrada com excelente condicionamento poderá experimentar o fluxo ao utilizar todos os seus recursos durante uma longa subida de serra no limite. Mas, da mesma forma, um ciclista menos condicionado não terá a mesma qualidade de experiência em uma subida mais fácil.
São as condições para o fluxo, resumidamente (CSIKSZENTMIHALYI, 1988; CSIKSZENTMIHALYI, 1999):
1) É necessário estar envolvido na atividade com metas claras, direcionando e estruturando as tarefas. Ou seja, tendo perfeitamente claro o propósito do esforço na qual o ciclista está empenhado. Seja zerar uma subida extremamente técnica e dura, estabelecer sua melhor marca em um contrarrelógio ou acompanhar um pelotão de ciclistas fortes. Isso define a meta para a qual o atleta precisa se concentrar, eliminando outras variáveis que não vem ao caso naquele momento (olhar a paisagem, esperar os amigos, postar uma foto no Instagram, ajustar o selim etc)
2) É necessário um equilíbrio entre os desafios percebidos na atividade e as habilidades do participante. E, idealmente, que seja uma habilidade bastante desenvolvida e um desafio que leve o praticante aos seus limites pessoais. Um ciclista altamente condicionado e um mountain biker extremamente habilidoso não possuem apenas motores potentes e técnica refinada, mas todo o treinamento também resultou em adaptações mentais para lidar com as dificuldades. Por isso, andar por meia hora com o coração na boca pode ser horrível para uns, mas um deleite eufórico para outros.
3) A atividade deve prover um feedback claro e imediato sobre seu desempenho nas tarefas. Na bike, claramente isso é a diferença entre o tombo e o obstáculo superado, entre acompanhar ou não o pelotão, entre manter ou não o ritmo na prova. É comum ouvir relatos de atletas em ótima forma mencionando como “tudo estava encaixado” ou, como disse Tom Dumoulin ao vencer o Mundial de contrarrelógio: “achei que o medidor de potência estava até marcando errado”. Ele estava em seu auge, fazendo simplesmente tudo que estava ao alcance das suas habilidades naquele momento. Imagine não só a força e o esforço empregado naqueles 45 minutos, mas também a enorme concentração e foco necessários.
Considerações finais
Seja qual for a modalidade, a evolução do ciclista tanto em técnica quanto em condicionamento permite acessar novos níveis de desafios. Com o avançar do desenvolvimento, ele poderá desfrutar das sensações incríveis decorrentes do cumprimento de tarefas cada vez mais exigentes. Eventualmente, poderá inclusive chegar ao ponto de perceber o estado de Fluxo. Quer motivação maior para pegar firme do que essa? Quem já esteve “lá” sabe bem: a sensação é única. Realmente, algo que perdura em nossa memória como alguns dos grandes momentos da nossa vida.
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. The flow experience and its significance for human psychology. In: CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Optimal experience: psychological studies of flow in consciousness, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1988.
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. A descoberta do fluxo: a psicologia do envolvimento com a vida cotidiana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
JACKSON, Susan; CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow in sports: the keys to optimal experiences and performances. Champaign, IL, EUA: Human Kinetics, 1999.
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