Por Gabriel Vargas/Especial para o Bikemagazine
Foto de divulgação
A fase da “base” é um dos tópicos que mais despertam dúvidas em ciclistas que gostam de entender melhor sobre o processo de treinamento. Curiosamente, é um assunto cheio de mitos e equívocos, principalmente quando falamos de ciclistas que competem poucas provas no ano ou que não competem
Dou uma definição simples, clara e universal para o período de base: a fase em que o atleta pode e consegue trabalhar, de maneira sustentável e precavida, todos os aspectos que ele precisará ter desenvolvido para a fase competitiva e que não poderá trabalhar depois.
Pense bem: uma dieta restritiva prejudicial para o desempenho com o objetivo de manipular a composição corporal (perder peso)? Fazer na base e não na fase competitiva!. Treinos longos e descompromissados para quem vai correr uma dúzia de provas durante o ano? Fazer na base! Não será produtivo na fase competitiva. Fortalecimento pesado e desgastante para construir músculo para dar mais “carcaça” ao mountain biker (e de quebra, ter mais espaço para estocar glicogênio)? Fazer na base, para não atrapalhar os treinos na fase competitiva!.
Neste assunto, outro termo é “transição”, que normalmente corresponde ao período de descanso e destreino controlado ao fim da temporada. É uma ótima época para incluir outras atividades (para variar os estímulos ao corpo) e, sem dúvida, para avaliar como foi o ano que passou e entender os altos e baixos da temporada.
Para ajudar os leitores a entenderem melhor o que realmente importa nessa época e como proceder, apresentarei nesse texto um pouco da metodologia que utilizo no trabalho com treinamento com os ciclistas que acompanho. Antes de qualquer coisa, porém, é muito importante romper com algumas tradições que não fazem muito sentido para o nosso caso. E é assim que iniciaremos o nosso processo:
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Precisamos fazer igual aos ciclistas profissionais da Europa?
Você já deve ter ouvido falar de “treinos longos em baixa intensidade” no período de transição e base. Não é uma proposta ruim, mas você já parou para questionar de onde vem essa ideia? Segundo o site ProCyclingStats, os ciclistas das principais equipes europeias tendem a correr aproximadamente 70 a 80 dias por ano (lembre-se que um ano tem 52 semanas). Eles competem muito, viajam muito, e tem um inverno rigoroso bem na fase de transição entre as temporadas.
Por outro lado, um ciclista competitivo amador no Brasil e que disputa MUITAS provas, provavelmente irá correr em 15 a 20 dias (ou finais de semana), talvez um pouco mais, o que já é bastante. Uma boa parte dos atletas sob meus cuidados competem entre 6 a 8 provas por ano (talvez um pouco mais se incluirmos as provas “C”, como rachões, etc). Mas a maioria corre muito menos.
É aqui que mora a grande contradição sobre o que os ciclistas esperam sobre “base”. Muitas das orientações e informações que circulam por aí tem origem lá no ciclismo profissional europeu. É um cenário em que, mesmo o ciclista passando 25 a 30 horas por semana em cima da bicicleta, são tantas competições que muitas vezes sobram poucas oportunidades para os treinos básicos e fundamentais durante a temporada, como os treinos de resistência. Aqui no Brasil, vemos muito isso entre os atletas de elite do MTB, que, além do calendário extenso de provas importantes no Brasil e exterior, também participam de muitos eventos regionais para promover os patrocinadores.
Pergunto, então: o que você não consegue fazer durante o ano, mas que conseguirá fazer durante a fase de base? Se você não tem resposta para essa pergunta, então provavelmente não precisa de uma base muito distinta do que fará ao longo do treinamento nos próximos meses. Se há motivos, então sim, faz sentido ter um período de base mais tradicional.
Na minha experiência como treinador, vejo dois casos entre os amadores: os que realmente competem muito (e sobram poucos finais de semana para treinar fundamentos) e os que treinam muito no rolo sempre e terão férias no final e início de ano, permitindo mais tempo de trilhas e estrada de verdade.
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Precisamos descansar?
Os ciclistas sob minha supervisão precisam de algum tipo de descanso ao fim da temporada por motivos variados – que é o nosso período de transição. O interessante é que muitas vezes esses motivos não tem nenhuma relação com a bike. Muitas pessoas têm carga de trabalho aumentada nessa época do ano, aumentando também o estresse geral. Por isso é muito importante sempre pensar no contexto geral no qual o ciclista está inserido, quando falamos de atletas amadores.
Outros treinaram com muito rigor o ano inteiro e chegou a hora de desanuviar a cabeça em relação aos treinos estruturados e números. Outros competiram bastante. E há quem simplesmente não precise descansar, pois talvez não exista motivo para isso. A única regra é: se você sente que precisa de um alívio, não deixe de descansar por alguns dias por achar que vai perder condicionamento. Livre-se dessa preocupação e procure a orientação de um treinador profissional já.
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Ok, mas o que fazer na base, então?
Lembre-se da questão que coloquei anteriormente. Há algo no treinamento (ou que afete o treinamento) que você não consegue ou não deve fazer durante o ano? Para ciclistas amadores, mesmo entre os competitivos, na maioria das vezes esses fatores estão relacionados à composição corporal (perder peso, ganhar massa), iniciar ou intensificar o fortalecimento, praticar outras modalidades e atividades físicas, experimentar outras abordagens nutricionais, experimentar outras rotinas de treinamento, fazer grandes alterações no equipamento e bike fit, focar em trabalho de técnica e pilotagem, treinar com amigos e parceiros com nível muito discrepante, fazer cicloviagens, peregrinações ou aventuras, ou simplesmente ter mais tempo para treinar fora do rolo.
Se esse é seu caso, então defina metas e tente cumpri-las dentro da fase da base. E saiba que a fase de base precisa terminar com alguma antecedência em relação às principais competições (isso é assunto para outro texto futuro). Essas metas podem ser algo como um peso ou porcentagem de gordura corporal, a consolidação de uma rotina de treinamento ou um volume de treinamento, o estabelecimento de um certo nível de carga de treinamento acumulada, etc.
Esses aspectos tornam-se prioritários para quem se enquadra nesses casos. Para quem não se enquadra, porém, a abordagem é um pouco diferente e dependerá muito dos objetivos da temporada seguinte. Há competições? Quantas e quando são? As respostas para essas perguntas já fazem a diferença entre trabalhos de base completamente, absolutamente distintos. Por isso, lamento ao leitor, não é possível trazer neste texto uma receita simples.
O que exponho aqui é a estratégia de pensar especificamente no seu caso, invés de seguir dogmas antigos que não se ancoram em nossa realidade ou seguir um plano de treinamento que não atende às suas particularidades e necessidades. Mas, em resumo, é simples: fazer na base uma preparação que contemple aquilo que você precisa depois, mas só pode fazer agora; ter desenvolvido tudo aquilo que você irá aperfeiçoar e aprimorar depois, especialmente para quem compete em nível elevado, como atletas federados e elite.
Para quem não compete ou compete pouco, ou ainda para quem participa de eventos com o objetivo de superação pessoal e/ou completar os percursos, aquilo que vem depois da base é uma continuação do que é iniciado na base, apenas com melhor direcionamento e aumento de especificidade (tornando os treinamentos mais similares ao evento alvo – mas não considere isso como uma regra, também).
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Quando e como terminar o período de base?
No planejamento macro do treinamento, naquilo que podemos entender como “periodização”, sempre olhamos para as datas / eventos alvo e contamos o tempo para trás. Quem tem um alvo prioritário (prova A) no final de maio e pretende fazer um ciclo de 12 semanas de construção, deverá encerrar a base no final de janeiro. Mas a base foi planejada e está sendo executada de forma a contemplar seus objetivos até o final de janeiro?
Isso mostra a importância de ter claro tanto as metas quanto o processo, e, principalmente, saber que um bom planejamento é um planejamento flexível, que está sempre em constante revisão, reavaliação e ajustes. Se tudo correr bem e o processo for compreendido e respeitado, e as metas forem satisfatoriamente atendidas, então é hora de avançar para a fase de construção. Novamente, os detalhes sobre isso dependem muito de vários fatores. 20 ciclistas poderão ter 20 estratégias e abordagens diferentes, cada um com suas especificidades e particularidades.
Deixo uma dica: se você não é ciclista de alto nível (elite, profissional etc), saiba que uma boa base, bem planejada e bem executada, poderá o deixar praticamente tão “bem” quanto estava próximo ao fim da temporada anterior, antes do período de transição.
Gabriel Vargas – Treinamento em ciclismo
www.gabrielvargas.com.br



