Texto: Maico Bez Birolo.
Fotos: César Amboni e Augusto / Gustavo Canabarro de Freitas
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Desbravar os Andes é uma experiência única, recomendável a todos que desejem vivenciar fortes emoções. Após a saída de Criciúma, Santa Catarina, quase três mil quilômetros sem escalas e alcançávamos os vinhedos de Mendoza”, no extremo oeste do território argentino. Bicicletas no chão e na manhã do dia 27 de janeiro de 2005, teria início nossa primeira experiência internacional no pedal.
Foram oito dias memoráveis: quatro no carro controlando a ansiedade, nos dois primeiros a de colocarmos logo em prática todo o planejamento realizado; nos dois últimos a de chegarmos de volta aos nossos familiares. Outros quatro dias foram no selim das “magrelas”, e a cada curva encontrando paisagens dignas de postais
1° dia: 27.01.05 – Mendoza (700m) a Uspallata (1.900m) – 116 km
Nove da manhã, clima contribuindo e ânimos exaltados. Após algumas fotos, a pequena “escalera” saía de Mendoza. Já havíamos sido avisados da baixa inclinação das subidas, apesar dos 1.200m de desnível a serem vencidos.
A aridez impressiona, sob forte calor a saliva transforma-se em uma “papa”, castigando até os mais preparados. O consumo de água triplicou na vã esperança de minimizar os efeitos do clima. No entanto, a paisagem era reconfortante: incontáveis cânions; lagos de degelo; uma corredeira nos acompanhou o tempo todo, onde empresas que exploram esportes de aventura estavam sediadas; inúmeros túneis que guarneciam a estrada de avalanches ou deslizamentos de terra repentinos; uma estrada de ferro desativada serpenteava o cânion paralelo ao nosso; e ainda um curioso coiote atravessou a estrada sorrateiramente.
Na chegada a “Uspallata”, um acampamento de montanha do exército argentino nos deu boas vindas. A pequena vila de montanha respira aventura: aluguel de MTB´s; anúncios de trekkings; passeios em veículos 4X4; artesanato; uns poucos restaurantes e pequenas pousadas, típicas do turismo de aventura, ou seja, com pouco luxo.
2° dia: 28.01.05 – Uspallata (1.900 m) a Las Cuevas (3.200 m ) – 83 km
Os prognósticos eram alarmantes: sofreríamos com fortes ventos contrários; a altitude começaria a castigar; além de subidas em que perderíamos a conta.
Tudo bem, seis da matina e todos de pé no café e às sete iniciamos o giro a Las Cuevas. Sem dúvida, o dia com as mais belas paisagens. Nos primeiros cinqüenta quilômetros percorrêramos vales ao melhor estilo dos Pirineus espanhóis.
Sorrisos nas faces: ventos favoráveis; relevo agradável; paisagens exuberantes; até um condor nos brindou com sua imponente envergadura de asas.
Nos pouco mais de 30 quilômetros finais, o que se viu foram: frio; ventos contrários fortíssimos; subidas a perder de vista; acampamentos de aclimatação de alpinistas; mulas carregadeiras mortas na beira da rodovia, provavelmente vítimas da fragilidade dos seres vivos no clima andino; além de um local fantástico chamado “Puente del Inca”, uma ponte de sedimentos que se formou após milhares de anos sobre o rio do degelo andino.
Há também no local, ruínas de construções incas, bem como o resto de um hotel destruído por uma avalanche. Sem dúvida o lado mais místico da cordilheira argentina.
Na chegada a “Las Cuevas” dormiríamos nada mais, nada menos que no albergue mais alto do mundo: Centinela de Piedra, 3.200m de altitude.
Trocamos pneus ao final do dia, pois no dia seguinte o pavimento compor-se-ia de pedras e chão batido, além de uma boa cama, nada mais.
3° Dia: 29.01.05 – Las Cuevas (3.200 m) a Los Andes (500 m) – 72 km
Era mais de oito da matina e a sensação térmica ainda encontrava-se próxima de 0°C. Na rua, um pequeno córrego congelado ao lado do albergue denunciava o frio.
Sem problemas, bikes na estrada. Quase nove quilômetros de subida e 1.000 m de desnível a vencer, com a cadeia de montanhas do pico mais alto das Américas nos espreitando.
Com uma sensação térmica negativa, galgamos o topo do “Cerro el Cristo Redentor”, a 4.200m de altitude, a maior alcançada na viagem.
Paralelo à cadeia do Aconcágua, o local marca a divisão dos territórios argentino/chileno na Cordilheira e representa a antiga “Ruta 7”, pois hoje há o túnel internacional (com 3 km de extensão, passando debaixo da cadeia de montanhas que circundam o Pico do Aconcágua, com seus 6.959 m de altitude).
A descida foi alucinante e em pouco tempo estávamos adequando nossa papelada com o objetivo de entrarmos legalmente em território chileno. Após a famosa descida dos “Caracoles”, a chegada a Los Andes.
Hotel encontrado, “magrelas” no carro e um passeio em Viña del Mar com direito a pôr-do-sol no pacífico e muita gente bonita.
4° dia: 30.01.05 – Los Andes (500 m) a Aduana Chilena (3.000 m) – 30 km
Como último teste, subiríamos os “caracoles” e tentaríamos vencer a cordilheira chilena de uma só vez.
Havia boatos de neve, pois na noite anterior o tempo fechara. Sob muita serração, partimos às oito da manhã.
À medida que ganhávamos altitude, a temperatura caía vertiginosamente e a certa altura os primeiros flocos começaram a cair, deixando-nos “só sorrisos”.
Pedalar sob uma nevasca é mágico, inesquecível.
Ninguém viu altitude, aridez ou frio neste dia. Na aduana chilena, a sensação térmica beirava os -10°C em pleno janeiro e ao meio-dia. Nessa hora já não tinha cansaço ou preocupações, apenas um sentimento de dever cumprido e para a cordilheira uma mensagem: “Muito obrigado e até logo!”
CURTAS
Região fronteiriça contestada por muitos anos entre a Argentina e o Chile, a Cordilheira dos Andes personifica a belicosidade destas nações. Entre Uspallata e Las Cuevas, ao atravessarmos um acampamento militar argentino em Punta de Vacas, nos foi dada ordem para que retirássemos uma bandeira brasileira da van de apoio.
Ao pernoitarmos no albergue Centinela de Piedra, por volta das 22h, dois alpinistas aparentando ascendência escandinava chegaram ao local, completamente desorientados. Um parecia bastante lúcido; no entanto, o outro já entrava em estado de inconsciência e apresentava todos os sintomas do “mal da montanha” (edema respiratório do pulmão). Foram levados às pressas até o nível do mar.
A altitude não nos causou grandes problemas. Porém, quando da estada no Centinela de Piedra, a maioria acordou com dores de cabeça, congestão nasal e muitos relataram ter despertado subitamente no decorrer da noite, ao sentirem falta de ar.
O tráfego de alpinistas que desafiam o Aconcágua nesta época do ano é intenso. Quando estávamos em Puenta del Inca, fomos abordados por um estoniano que se dizia apaixonado por bikes e viera naquela semana de uma expedição vitoriosa ao Pico do Aconcágua. Sabia apenas duas palavras em português: Rio de Janeiro e caipirinha, onde dizia que passaria suas férias no mês seguinte.
O local mais místico da cordilheira chilena é, sem dúvida, o santuário de “Defunta Correa”. Relata a lenda que “Difunta Correa” era uma mulher que desesperada para salvar seu filho, quando perdidos na aridez andina, deixou de beber água potável para que seu filho sobrevivesse. Morreu de sede e até hoje caminhoneiros deixam garrafas d’água em seu santuário na busca de proteção.
Foi um privilégio termos como motorista, intérprete e apoiador o “lendário” Osmar Campezato, trinta anos dedicados ao ciclismo, ex-ciclista profissional da extinta equipe Pirelli, atual diretor esportivo da equipe Avaí de Ciclismo, um verdadeiro workshop de ciclismo e histórias hilárias.
ESPECIAL
O ciclista profissional Gustavo Canabarro de Freitas acompanhou o grupo. Sempre muito além das metas estipuladas para a viagem, no segundo dia não contente em chegar ao albergue Centinela de Piedra, resolveu atravessar o túnel internacional pedalando. Resultado: detido pela polícia chilena.
No quarto dia, apesar dos -10°C na aduana chilena e informado de que no topo do “Cerro el Cristo Redentor” a sensação térmica beiraria os -30° C, desafiou a montanha. Conseguiu graças ao instinto de sobrevivência inerente ao ser humano e às roupas compradas do ciclista profissional Murilo Fischer, quando passou sua temporada na equipe italiana Domina Vacanze. Mas o desafio teve seu preço, dias após a viagem, descobriu quatro de seus dentes trincados, em razão do frio intenso.



